sexta-feira, 30 de maio de 2008

vidro côncavo

Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar
Dói esta corda vibrante
A corda que o barco prende
à fria argola do cais
Se uma onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.

António Gedeão, Vidro côncavo

quinta-feira, 29 de maio de 2008

equação

Conto os meus sonhos com a tábua
de calcular. Cada um deles é uma equação
diferente. Mas o resultado é só um:
a soma dos dias em que acordo.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Íssimo, íssimo. íssimo


O que há em mim é sobretudo cansaço

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.


A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto alguém.

Essas coisas todas.


Essas e o que faz falta nelas eternamente;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.


Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossívelmente o possível,

Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...


E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço.

Íssimo, íssimo. íssimo, Cansaço...


Álvaro de Campos

domingo, 25 de maio de 2008

maçonaria

Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo sem palavras.
(...)
Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.

Clarice Lispector in Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969)

quinta-feira, 15 de maio de 2008

a noite o riso - 3







O meu saber o mundo desde o começar: situação de naufrágio. Foi como se nascesse a bordo de jangada onde pessoas inseguras andassem reinando ao estamos-num-paquete. Vi água entrando como em passador, e lá-vai-d'eu, nadar até trepar noutra jangada. Quando esta segunda geringonça naufragou, foi nova natação até que entrei numa terceira. Já estou (momento actual) de novo a dar aos braços e às pernas; que a jangada III se está sumindo na profundidade das loucuras antiquíssimas.
Nuno Bragança in A Noite e o Riso (1969)

a noite o riso - 2

Recordo. Tempos em que temi ser diferente. E mais: o sossego sol de Abril quando percebi que o era mesmo, segundo as leis de ser pessoa. Só que muito poucos ousam abertamente as consequências, e são então explosões ou os pequenos golpes da cuidadosa, afiada sacanice. Quem frequentou determinados casamentos, ou tabernas em noite de jorna, viu.

Nuno Bragança in A Noite e o Riso (1969)



quarta-feira, 14 de maio de 2008

Jardins há muitos...? ou parvos a votar são cada vez mais...?

"Se votarem nos conservadores, as vossas mulheres vão ter mamas grandes e as vossas Chances de conduzirem um BMW M3 aumentarão."

"sou a favor do casamento homossexual, mas se o autorizarmos também entre três homens ou mesmo entre três homens e um cão."

Alexander Boris de Pfeffel Johnson, novo presidente da Câmara de Londres (Revista Visão de 9 de Maio de 2008)



segunda-feira, 12 de maio de 2008

a noit e o riso - 1



O Doutor escreveu no quadro os dados do problema:
"Quando um pobre nos lambe as botas, devemos ou não untá-las previamente?
Em caso afirmativo, justifique a resposta."
(...)
Não tardei a ficar completamente absorvido pelo que aquele fedelho magro ia transportando dos miolos para o papel. Lembro-me perfeitamente, era assim:
1.1 Se o pobre me lambe as botas, espera que eu espere isso.
1.2 Se eu untar as botas com nada, o pobre pode pensar que eu sou
distraído ou
desconhecedor dos costumes ou
desprezador da miséria.
1.3 Qualquer destes três pensamentos pode fazer zangar o pobre, ou seja, levá-lo a cometer algum pecado.
1.4 Para impedir o pobre de pecar é pois necessário untar as botas que ele vai lamber.
2.1 Se eu untar as botas com qualquer dos produtos com que habitualmente elas se untam, o resultado pode ser idêntico ao de 1.2, com as nefastas consequências indicadas em 1.3.
2.2 Visto que devo untar as botas com um produto que me atrevo a chamar não-botoso, há que saber se este deve ser salubre ou insalubre.
2.3 Se o produto for insalubre, o pobre pode apanhar uma doença e morrer. Ora, não se deve matar pobres, porque cada um deles representa esmolas possíveis, quer dizer Boas Acções. Como dizia o Poeta, "os pobres são degraus da escada que conduz os ricos ao Céu"
2.4 O produto deve, portanto ser salubre, a fim de preservar a saúde dos pobres, a qual é a garantia físico-química da salvação dos ricos.
3.1 Se o produto for salubre, isso pode ter as seguintes consequências:
3.1.1 robustecer demasiado o pobre;
3.1.2 atrair um numero excessivo de pobres à lambedela.
3.2 A consequência 3.1.1 é de evitar, porque um pobre muito robusto decide-se a deixar de ser pobre, o que é um mal pela razão apontada em 2.3.
A consequência 3.1.2 também é de evitar, pelo mesmo motivo e ainda porque, quando o numero de pobres lambedores aumenta muito, a paciência do rico lambido diminui bastante.
3.3 O produto deve, pois, ser moderadamente salubre, até porque a moderação é a principal qualidade a exigir a um pobre.

Nuno Bragança in A noite e o Riso (1969)

sábado, 10 de maio de 2008


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Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor

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SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


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segunda-feira, 5 de maio de 2008

A TEORIA DA COR


"Pode um amigo colorido pôr-nos a vida a preto e branco? Pode. Até a pode pintar de negro e quase para sempre. Os amigos coloridos dão-nos momentos de prazer, novas perspectivas de vida (...), novas reacções ao êxtase, novo alento ao ego, novos comportamentos, outros comprimentos. Mas também tiram. Levam a inocência, alguma capacidade de acreditar que a coisa corra bem um dia, tiram o mistério da relação e consomem-nos apenas os fluidos.Afinal, o que têm eles de tão mágico? Muito. Tudo!Desaparecem no dia seguinte sem deixar rasto, nem um recadinho a dizer que o leite podia estar estragado. Mas isto não engana, porque afinal, sobre os amigos coloridos que são mágicos não podemos criar ilusões. Com eles não há recadinhos, não há frases feitas, nem mãos dadas na rua. Não há disponibilidade. A eles não se pode ligar a fazer queixa da constipação ou do almoço que foi caro. Com ele só se pode falar de dois assuntos: quando e onde. Todas as outras perguntas são secundárias. E a teoria destes amigos dos tempos modernos pode cair(...) no dia em que nos apaixonamos (cenário negro)... Mas cai de certeza por terra sempre que fazemos disso modo de vida (em branco)..."

Sofia Salazar

sábado, 3 de maio de 2008

não tenho tempo para isso


Eu não quero mudar o mundo.
Não tenho tempo para isso.
Quem quer mudar o lugar do mundo actua como quem
muda o lugar de um móvel:
empurra primeiro para um lado,
foi força demais,
empurra então para o outro lado,
agora com força de menos,
depois mais um pequeno toque para lá
e um ainda mais pequeno toque para lá,
e agora sim:
o móvel está no lugar.
Depois abrimos o móvel e vemos que os copos que estavam lá dentro se encontram todos partidos.
Estão a ver?
Os copos todos partidos.

Que aborrecimento.
Não nos lembrámos da fragilidade do vidro.


Gonçalo M. Tavares in "O homem ou é tonto ou é mulher"


quinta-feira, 1 de maio de 2008

inesperado

Vivemos com o inesperado todos os dias. Surpreende-nos, prega partidas, prepara! O inesperado prepara-nos, porque exige reacções, decisões e posições. (...). E, ali, de repente, à nossa frente, o inesperado exige de nós, incita a nossa inteligencia, puxa a nossa capacidade, pede a nossa lucidez.
O inesperado são surpresas que a vida nos faz. É um presente que não se espera, um telefonema que não se conta, um desafio que não se conhece.
O inesperado é a vida a acontecer, é o destino a falar. E quando o destino nos fala desta maneira, nesta linguagem, nós podemos admiravelmente corresponder com a nossa decisão e com a nossa coragem.
Ana Margarida Oliveira
Joaquim Cannas
in
Admirável Mundo



eles não podiam escapar

"... a demasiada oportunidade em demonstrarem os seus sentimentos proibia-lhes que falassem de amor, e mesmo foram-se habituando a um tipo de relações em que intervinha sobretudo um vexame de cumplices que a razão não aproximou. Pretendiam, ao ignorar que se amavam, afastar a ideia de terem aceitado favores apenas de coração. Mas todos os estados de alma exasperados conduzem ao amor, porque são afinal a ocupação exagerada dos outros. Eles não podiam escapar."
Agustina Bessa-Luís in "O Manto" (1961)