quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Aquele mês de Agosto

8.30 - José Silva acorda e constata que a sua casa foi assaltada durante a noite. Espreguiça-se. Toma banho tentando poupar a agua, toma o pequeno almoço tentando poupar o leite e põe-se a caminho do emprego tentando poupar os sapatos.

9.00 - empurra o carro até à bomba de gasolina e é assaltado duas vezes: a primeira pela gasolineira, que voltou a aumentar os preços do combustivel; a segunda por criminosos armados, que lhe levam o pouco que ainda lhe restava na carteira. Boceja. Conclui que prefere os segundos assaltantes, na medida em que roubam menos e com menos frequencia. Nota que, apesar disso, a policia não faz qualquer esforço para apanhar os primeiros.

10.00 - Já na estrada, é vitima de carjacking. Encolhe os ombros. Prossegue a pé

10.05 - Um gang tenta assaltá-lo. Explica que ficou sem a carteira num assalto anterior.

10.10 - Outro gang tenta asslatá-lo. Fornece a mesma explicação. Os membros do gang colam-lhe um autocolante na lapela para que futuros meliantes saibam que já foi assaltado nesse dia e evitem perder tempo com ele. Recomendam-lhe que retire o autocolante assim que voltar a transportar valores.

11.30 - Vai ao banco levantar dinheiro.

11.32 - Crimonosos armados irrompem no banco. Clientes e funcionários formam calmamente uma fila e tiram senhas para serem assaltados por ordem.

11.35 - O criminalista Moita Flores irrompe no banco e começa a comentar o assalto junto de um grupo de clientes. Tece várias considerações sobre um novo tipo de criminalidade violenta que parece estar a aumentar no nosso país, aponta as limitações da polícia e sublinha as incongruências do novo código de processo penal. Alguns clientes oferecem-se para serem sequestrados, caso os assaltantes lhes garantam que os levam para longe do criminalista Moita Flores.

11.45 - O criminalista Moita Flores interpela os assaltantes e comunica-lhes que o método que escolheram para levar a cabo o assalto não é o melhor, criticando sobretudo a não utilização de luvas e tecendo alguns reparos ao plano de fuga, que considera extremamente frágil.

11.46 - Um dos assaltantes dispara duas vezes sobre a perna do criminalista Moita Flores

11.47 - Clientes e funcionários do banco homenageiam os assaltantes com um forte aplauso.

17.30 - Depois de vários horas de sequestro, o assalto termina. A polícia detém os criminosos, resgata os reféns e amordaça o criminalista Moita Flores, para que vá receber assistência hospitalar.

18.00 - Por sorte, mal acaba de sair do banco, José Silva encontra o seu carro abandonado na berma da estrada. Entra no veículo e dirige-se para casa.

18.05 - É detido pela policia por se encontrar a conduzir um carro que foi usado em diversos crimes.

20.00 - É identificado e preso. Na cela, verifica que o relato da sua vida é extraordinariamente demagógico e conclui que toda a sua existência podia ter sido inventada por Paula Portas. Chora.

Ricardo Araújo Pereira in "Boca do Inferno", Revista Visão, 28 de Agosto de 2008


quarta-feira, 3 de setembro de 2008

a saudade de um rio

"Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos.
Nuno Judice