O Doutor escreveu no quadro os dados do problema:
"Quando um pobre nos lambe as botas, devemos ou não untá-las previamente?
Em caso afirmativo, justifique a resposta."
(...)
Não tardei a ficar completamente absorvido pelo que aquele fedelho magro ia transportando dos miolos para o papel. Lembro-me perfeitamente, era assim:
1.1 Se o pobre me lambe as botas, espera que eu espere isso.
1.2 Se eu untar as botas com nada, o pobre pode pensar que eu sou
distraído ou
desconhecedor dos costumes ou
desprezador da miséria.
1.3 Qualquer destes três pensamentos pode fazer zangar o pobre, ou seja, levá-lo a cometer algum pecado.
1.4 Para impedir o pobre de pecar é pois necessário untar as botas que ele vai lamber.
2.1 Se eu untar as botas com qualquer dos produtos com que habitualmente elas se untam, o resultado pode ser idêntico ao de 1.2, com as nefastas consequências indicadas em 1.3.
2.2 Visto que devo untar as botas com um produto que me atrevo a chamar não-botoso, há que saber se este deve ser salubre ou insalubre.
2.3 Se o produto for insalubre, o pobre pode apanhar uma doença e morrer. Ora, não se deve matar pobres, porque cada um deles representa esmolas possíveis, quer dizer Boas Acções. Como dizia o Poeta, "os pobres são degraus da escada que conduz os ricos ao Céu"
2.4 O produto deve, portanto ser salubre, a fim de preservar a saúde dos pobres, a qual é a garantia físico-química da salvação dos ricos.
3.1 Se o produto for salubre, isso pode ter as seguintes consequências:
3.1.1 robustecer demasiado o pobre;
3.1.2 atrair um numero excessivo de pobres à lambedela.
3.2 A consequência 3.1.1 é de evitar, porque um pobre muito robusto decide-se a deixar de ser pobre, o que é um mal pela razão apontada em 2.3.
A consequência 3.1.2 também é de evitar, pelo mesmo motivo e ainda porque, quando o numero de pobres lambedores aumenta muito, a paciência do rico lambido diminui bastante.
3.3 O produto deve, pois, ser moderadamente salubre, até porque a moderação é a principal qualidade a exigir a um pobre.
Nuno Bragança in A noite e o Riso (1969)