8.30 - José Silva acorda e constata que a sua casa foi assaltada durante a noite. Espreguiça-se. Toma banho tentando poupar a agua, toma o pequeno almoço tentando poupar o leite e põe-se a caminho do emprego tentando poupar os sapatos.
9.00 - empurra o carro até à bomba de gasolina e é assaltado duas vezes: a primeira pela gasolineira, que voltou a aumentar os preços do combustivel; a segunda por criminosos armados, que lhe levam o pouco que ainda lhe restava na carteira. Boceja. Conclui que prefere os segundos assaltantes, na medida em que roubam menos e com menos frequencia. Nota que, apesar disso, a policia não faz qualquer esforço para apanhar os primeiros.
10.00 - Já na estrada, é vitima de carjacking. Encolhe os ombros. Prossegue a pé
10.05 - Um gang tenta assaltá-lo. Explica que ficou sem a carteira num assalto anterior.
10.10 - Outro gang tenta asslatá-lo. Fornece a mesma explicação. Os membros do gang colam-lhe um autocolante na lapela para que futuros meliantes saibam que já foi assaltado nesse dia e evitem perder tempo com ele. Recomendam-lhe que retire o autocolante assim que voltar a transportar valores.
11.30 - Vai ao banco levantar dinheiro.
11.32 - Crimonosos armados irrompem no banco. Clientes e funcionários formam calmamente uma fila e tiram senhas para serem assaltados por ordem.
11.35 - O criminalista Moita Flores irrompe no banco e começa a comentar o assalto junto de um grupo de clientes. Tece várias considerações sobre um novo tipo de criminalidade violenta que parece estar a aumentar no nosso país, aponta as limitações da polícia e sublinha as incongruências do novo código de processo penal. Alguns clientes oferecem-se para serem sequestrados, caso os assaltantes lhes garantam que os levam para longe do criminalista Moita Flores.
11.45 - O criminalista Moita Flores interpela os assaltantes e comunica-lhes que o método que escolheram para levar a cabo o assalto não é o melhor, criticando sobretudo a não utilização de luvas e tecendo alguns reparos ao plano de fuga, que considera extremamente frágil.
11.46 - Um dos assaltantes dispara duas vezes sobre a perna do criminalista Moita Flores
11.47 - Clientes e funcionários do banco homenageiam os assaltantes com um forte aplauso.
17.30 - Depois de vários horas de sequestro, o assalto termina. A polícia detém os criminosos, resgata os reféns e amordaça o criminalista Moita Flores, para que vá receber assistência hospitalar.
18.00 - Por sorte, mal acaba de sair do banco, José Silva encontra o seu carro abandonado na berma da estrada. Entra no veículo e dirige-se para casa.
18.05 - É detido pela policia por se encontrar a conduzir um carro que foi usado em diversos crimes.
20.00 - É identificado e preso. Na cela, verifica que o relato da sua vida é extraordinariamente demagógico e conclui que toda a sua existência podia ter sido inventada por Paula Portas. Chora.
Ricardo Araújo Pereira in "Boca do Inferno", Revista Visão, 28 de Agosto de 2008