sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

coração tão branco


"[...] pareceu-me grave que eu, porque tinha dinheiro e gastá-lo não me faria diferença, tivesse a possibilidade de decidir onde o homem de pele tisnada podia tocar o seu realejo e onde a mulher da trança podia estender o seu prato. Comprei os passos de ambos, comprei ainda a sua vontade por um instante. Poderia ter-lhe pedido por favor, poderia ter-lhe exposto a situação e deixar que fosse ele a decidir, eles também estavam a trabalhar. Pareceu-me mais seguro oferecer-lhe dinheiro e pôr-lhe uma condição para ficar com ele. «Se for para a outra esquina a seguir», disse-lhe, «dou-lhe esta nota.» Depois, expliquei-lhes as minhas razões, mas, na realidade, eram desnecessárias, não precisava de ter feito isso após ter-lhe oferecido, para ele, era muito e, para mim, não era nada, tinha a certeza de que o aceitaria, o resultado teria sido o mesmo se, ao invés de em seguida referir o meu trabalho, como foi o caso, lhe tivesse dito: «Porque me apetece que se vá embora.» E assim foi, de facto,mesmo sem que lho tivesse dito, mandei-o para a outra esquina porque me apeteceu. Era um homem do realejo afável, como hoje em dia já não há, um vestígio do passado e da minha infância, deveria tê-lo tratado com mais respeito. O pior é que, provavelmente, ele preferia que as coisas se tivessem passado como passaram e não como agora penso que se poderiam ter passado, ou seja, teria preferido a nota ao meu respeito. Poderia ter-lhe pedido por favor que mudasse de sítio depois de lhe ter explicado a minha situação e ter-lhe oferecido a nota caso se mostrasse complacente e compreensivo, uma gratificação ao invés de um suborno, «pelo incómodo» ao invés de «vá-se embora»; contudo, entre as duas coisas não há diferença, em ambas há um sim de permeio, pouco importa que seja explícito ou fique implícito, que venha antes ou depois. Em certo sentido, o que eu fiz foi mais claro e mais limpo, sem hipocrisias nem falsos sentimentos, compensava-nos aos dois, era o que bastava. Todavia, apesar disso, comprei-o e decidi os seus passos, e, na outra esquina para onde o mandei, quem sabe se não terá sido atropelado por um camião de entregas que nesse momento tinha perdido a direcção e galgado o passeio, que não o teria atropelado se o homem de pele tisnada tivesse permanecido na esquina onde escolhera ficar. Acabava-se o chotis; o chapéu caído e o bigodinho ensanguentado. Mas também se poderia dar o contrário e, nesse caso, é provável que lhe tenha salvado a vida ao mandá-lo embora dali.
Isto, porém, são conjecturas e hipóteses, enquanto há alturas em que a vida dos outros, de outro (a configuração de uma vida, a sua continuação, não uns meros passos) depende das nossas decisões e vacilações, da nossa cobardia e do nosso arrojo, das nossas palavras e das nossas mãos e também, às vezes, de nós termos dinheiro e eles não." 

Livro estranhamente escrito como se o coração fosse tão branco, tão branco que nada o faz pulsar e a indiferença tira-lhe a cor. Passar na vida sem ser tocado nem tocar. O poder nas mãos de quem tem coração branco. A reflexão sem humanidade. Um neo-existencialismo...(?)