"Ponte de Telhe é uma farpa humana nas costelas do monte. Quem lá vive frequenta o café. O café fica em frente à estrada, e do outro lado da estrada a terra cai até ao rio. Quem lá vive frequenta a igreja. A igreja fica em frente à estrada, e do outro lado da estrada a terra cai até ao rio. Quem lá vive frequenta o clube cultural. O clube cultural fica em frente à estrada, e do outro lado da estrada a terra cai até ao rio.
Os cinquenta e três habitantes de Ponte de Telhe prestam por isso homenagem à própria estrada. Todos os dias, caso não chova, sentam-se em cadeiras, em geral às três da tarde, e observam os poucos transeuntes como quem possui a estrada. Olhá-los é olhar a estrada, é ver o caminho.
Mas são mensageiros da desgraça. Está tudo velho, nada presta. Este país morreu. Fomos nós que o matámos, nós pomos-lhe as mãos ao pescoço. Apertámos sempre. A estrada não acaba ali, nada acaba ali, somos todos iguais e os políticos também, as mulheres perderam a beleza que nunca tiveram e os homens já não lhes conseguem prestar assistência, se é que alguma vez as assistiram. O café servido no Beira do Rio vem aguado, o filho da senhora do café foi para o Porto e vive com a namorada. Nesta vida só a bilha do gás é renovável e mesmo assim cobram taxa, e além do mais os pássaros já não podem cantar.
Por isso visito Ponte de Telhe como último recurso.
A farpa humana incomoda o monte, enfia-se na pedra como chaga cada vez menos aberta mas cada vez mais dolorosa. A cicatriz ficará suturada quando os velhos morrerem, os novos partirem e as viúvas se fecharem à janela até também elas morrerem na cama que partilharam com os que partiram. Aí, momentos antes, dirão «Meu querido, meu amor», mas ele morreu há muito e só agora, prestes a juntarem-se a ele, sentem a sua falta. Depois o monte e o rio lavarão os vestígios da farpa deixando uma cicatriz muito fina, e não sobrará nada além de ruínas onde nem o toque do homem será perceptível.
Dir-se-á que foi responsabilidade da natureza. "
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