"Não entrei de livre vontade, não pude escolher, nem conheço o local de destino. Um dia, num passado remoto, acordei no meu compartimento e senti esse rolar. Era excitante, escutei o matraquear das rodas, pus a cabeça fora da janela, senti o vento e exultei com a velocidade com que as coisas passavam por mim. Desejei que o comboio nunca mais interrompesse a viagem. De maneira nenhuma quis que ele ficasse parado para sempre.
Foi em Coimbra, num banco duro de um auditório, que me tornei consciente: não posso sair. Não posso mudar de linha nem de direcção. Não sou eu que determino a velocidade. Não consigo ver a locomotiva nem reconhecer quem a conduz, ou se o maquinista é ou parece ser de confiança. Não sei se ele lê bem os sinais e se se apercebe quando uma agulha é mal mudada. Não posso mudar de compartimento. Vejo pessoas a passar pelo corredor e penso: se calhar, nos seus compartimentos tudo é diferente. Mas não me posso levantar e ir ver, um revisor que eu nunca vi, nem irei ver, fechou e selou a porta do meu compartimento. Abro a janela, debruço-me o mais possível para fora e vejo que todos os outros passageiros fazem o mesmo. O comboio descreve uma curva suave. As ultimas carruagens ainda estão dentro do túnel e as da frente já lá entraram novamente. Será que o comboio descreve constantemente o mesmo circulo, sem que ninguém se aperceba disso, nem mesmo o maquinista? Não faço a mínima ideia do tamanho da composição. Vejo os outros todos a esticarem o pescoço, na esperança de poderem ver e perceber alguma coisa. Saúdo-os, mas a deslocação do ar arrasta as minhas palavras.
A iluminação no compartimento muda, sem que tenha sido eu a determinar essa alteração. Sol e nuvens, crepúsculo e madrugada, chuva, neve, tempestades. A luz do tecto é mortiça, torna-se mais clara, um brilho ofuscante, começa a tremeluzir, apaga-se, regressa, é uma lamparina, um castiçal, um tubo de néon cintilante, tudo ao mesmo tempo. O aquecimento não é fiável. Pode acontecer que comece a aquecer quando faz calor e falhe quando está frio. Tento accionar o interruptor, ouve-se o clic-clac, mas nada muda. Estranho é que também o sobretudo não me aqueça de uma forma contínua. Lá fora, as coisas parecem levar o seu rumo habitual e lógico. Talvez isso aconteça também nos compartimentos dos outros? De qualquer forma, no meu tudo se passa de um modo diferente daquele que eu poderia esperar. Completamente diferente. Estaria o construtor bêbado? Seria um louco? Um charlatão diabólico?"
"Nos compartimentos encontram-se disponíveis horários. Quero saber quais são as paragens. As folhas estão vazias. Nas estações onde paramos as localidades não estão sinalizadas. Lá fora, as pessoas lançam olhares curiosos ao comboio. Os vidros estão sujos pelo frequente mau tempo. Penso: eles deturpam a imagem do interior. De repente, sinto necessidade de pôr ordem nas coisas. A janela está empenada. Grito até ficar rouco. Os outros passageiros batem nas paredes indignados. Por detrás da estação surge um túnel que me corta a respiração.Quando saímos do túnel, pergunto-me se alguma vez parámos de facto.
O que é que se pode fazer durante a viagem? Arrumar o compartimento. Fixar os objectos, para que não se ponham a trepidar. É então que sonho que a pressão do ar deslocado pelo comboio aumenta e rebenta com a janela. Tudo o que eu penosamente consegui arrumar e fixar voa à minha volta. Os sonhos, aliás, são constantes durante a viagem sem fim: sonhos em que não consigo apanhar o comboio e em que me deixo enganar por indicações falsas de horários; de estações que se esfumam num nada, assim que chegamos; de guarda-linhas e chefes de estação que surgem, de repente, com os seus bonés vermelhos, absortos, a fitarem o vazio. Por vezes, acabo por adormecer de puro tédio. Mas é perigoso adormecer, só muito raramente acordo recomposto e satisfeito com as transformações. Quase sempre, aquilo que encontro ao acordar, tanto no interior como no exterior, deixa-me confundido e infeliz.
Outras vezes, assusto-me e penso: a qualquer instante o comboio pode descarrilar. Sim, é verdade, na maior parte das vezes esse pensamento assusta-me. No entanto, há instantes, raros e incandescentes, em que a fantasia me trespassa como um raio de felicidade."
"Acordo, e a paisagem dos outros voa perante o meu olhar. Por vezes, a uma tal velocidade que eu nem tenho tempo de acompanhar os seus caprichos e delirantes disparates; outras vezes, quando insistem em repetir sempre as mesmas coisas, tudo se torna de uma lentidão dolorosa. Sinto-me aliviado por haver um vidro que nos separa. Assim, consigo reconhecer os seus planos e desejos, sem que eles me possam atingir impunemente. Sinto-me contente quando o comboio atinge a sua máxima velocidade e eles desaparecem. O que fazemos com os desejos dos outros, quando eles nos atingem?
Pressiono a testa contra a janela do compartimento e concentro-me com toda a minha energia. Quero, pela primeira vez, sentir e agarrar aquilo que se passa lá fora. Apreender e compreender, com todas as fibras do meu ser, para que não me escape novamente. Mas falho. Tudo se passa demasiado depressa, mesmo quando o comboio pára em pleno campo. As impressões sobrepõem-se e apagam-se constantemente. A memória aquece, tento desesperadamente organizar as sequências das várias imagens, num esforço inútil por chegar à ilusão de algo inteligível. Mas, por mais que a luz da atenção corra atrás das coisas, chego sempre atrasado. Quando chego, já tudo passou. Acabo sempre derrotado. Nunca estou presente. Mesmo quando, durante a noite, o interior do compartimento se espelha no vidro da janela.
Amo os túneis. São para mim um símbolo de esperança: há-de chegar o momento em que a luz iria surgir. Caso não seja noite.
Por vezes, recebo visitas no compartimento. Não sei como isso é possível, com a porta trancada e selada, mas acontece. Na maior parte das vezes, a visita chega a horas impróprias. São pessoas vindas do presente e do passado. Aparecem e desaparecem como muito bem lhes apetece, não têm respeito e incomodam-me. Tenho de falar com elas. É tudo provisório, descomprometido, votado ao esquecimento; o tipo de conversas que se têm nos comboios. Alguns dos visitantes desaparecem sem deixar rasto. Outros deixam rastos pegajosos e fétidos, o arejar de nada ajuda. Nessas alturas, quero arrancar todo o equipamento do compartimento para o trocar por outro novo.
A viagem é longa. Dias há em que a desejo infinita. São dias invulgares, preciosos. Depois há outros em que fico aliviado por saber que irá surgir um derradeiro túnel em que o comboio acabará por parar para sempre."
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O livro...
.... comeu o filme...
...ao pequeno-almoço.