sábado, 9 de novembro de 2019

distopia


"Era assim que vivíamos na altura? Mas vivíamos como era costume. Toda a gente vive, a maior parte do tempo. Seja o que for que aconteça, é como de costume. Tudo é como de costume, agora. 
Vivíamos, como de costume ignorando. Ignorar não é o mesmo que ignorância, exige esforço da nossa parte. 
Nada muda de um momento para o outro; numa banheira cuja água aquecesse gradualmente morreríamos cozidos sem dar por isso. Havia histórias nos jornais, claro, cadáveres em valas ou nas matas, mortas à cacetada ou mutiladas, vitimas de violência, como se costumava dizer, mas eram histórias acerca de outras mulheres, e os homens que faziam coisas dessas eram outros homens. Nenhum deles era dos homens que conhecíamos. As historias dos jornais eram como sonhos para nós, sonhos maus sonhados por outras pessoas. Que horror, dizíamos nós, e eram, mas eram horríveis sem serem credíveis. Eram muito melodramáticos, tinham uma dimensão que não era a dimensão das nossas vidas. 
Nós éramos as pessoas que não apareciam nos jornais. Vivíamos nos espaços em branco nas margens das paginas impressas. Dava-nos mais liberdade. 
Vivíamos nos espaços entre as histórias."