"Não sabia o que me magoava mais, se a afronta de o Jorge se meter com outras, sabendo que eu podia ver, se a humilhação de os nossos amigos comuns poderem assistir àquilo. Parecia que o meu sofrimento nunca mais teria fim, todos os dias havia posts novos, gostos novos, fotografias novas, novas amizades, eu podia reler as conversas, analisar os emojis, os tempos de resposta, procurar os perfis das outras, ver-lhes as fotografias, Olha-me a figura em que se põe esta putéfia, ouvia-me com a voz da mamã e nem isso me parava. Com o tempo, fui-me habituando e deixei de fazer fitas, sempre me habituei facilmente ao que não podia mudar. Mas nunca fiquei imune à felicidade que as putéfias exibiam nos seus perfis, à infinidade de outras vidas que, de repente, se tornavam acessíveis, temia que a nossa, a minha e a do Jorge, uma vida real e não editada, não aguentasse a pressão das vidas virtuais, temia que os corpos não editados das outras vencessem o meu corpo que, tão imperfeitamente real, se deitava todas as noites em bruto ao lado do Jorge".
Dulce Maria Cardoso in Eliete - A vida normal